segunda-feira, 7 de junho de 2010

...continua...

Sebastião tinha uma pequena livraria que abriu depois de o seu pai morrer. O pai de Sebastião era um homem culto. Tinha publicado alguns ensaios sobre literatura e ao longo dos anos tinha acumulado livros e mais livros e sonhara acabar os seus dias na sua casa da praia a lê-los, a imaginar e a escrever. Não teve tempo. Depois da morte súbita de seu pai, Sebastião quis dar um destino digno a tanta literatura. Resolveu concretizar um sonho antigo que nascera de uma conversa com o seu pai e os amigos artistas que costumavam frequentar a sua casa. Criar um espaço de tertúlia literária e artística como nos tempos da juventude do pai. Um espaço de convívio e de partilha onde também se venderiam livros. Sem hora de fechar, à mercê da vontade e da energia dos clientes e amigos.
A sua actividade como foto-jornalista não lhe permitia ter um rendimento fixo e muito folgado, por isso Sebastião resolveu aproveitar o ímpeto empreendedor de que raramente era acometido. Arranjou um pequeno espaço em Alfama e alugou-o. Decorou-o com fotografias suas, com quadros que o seu pai tinha pintado nos tempos livres e com outros objectos de viagens que fez em trabalho e abriu a livraria-café-bar.
Maria nunca concordou com esta ideia de Sebastião. Sempre lhe disse que o negócio não iria correr bem e que daria mais prejuízo do que lucro, que as pessoas já não se interessam pela conversa nem por livros. Começou a conjecturar cenários de decadência e bebedeiras e, pior do que tudo para ela, imaginou-os atolados em dívidas. Ainda assim Sebastião levou avante a sua vontade.

domingo, 6 de junho de 2010

...continua...


Maria chorou três dias seguidos, ou melhor, três noites que durante o dia tinha de ir trabalhar, que os empregos não se compadecem com tristezas. Depois de ter tido sentimentos contraditórios sobre o seu ex-namorado, amante, amigo, resolveu encerrar o assunto no seu coração. Nesses três dias tinha sentido por ele o que nunca sentira em dez anos de relacionamento. Recordou o dia em que se conheceram num mini-curso de jardinagem. Olhava para ele e via um rapaz tímido mas com um brilho que lhe chamara a atenção. Foi atraída pelos seus olhos verdes e tristes. Durante a semana que o curso durou começaram a ir ao cinema, a ver espectáculos juntos, a descobrir interesses comuns. No final do curso continuaram a sair frequentemente até que, depois de um concerto, a timidez dele desapareceu e ambos se envolveram num ardente beijo que terminou em casa de Maria. Recordou os momentos de aflição que passou após o acidente de carro que ele teve depois de uma brutal discussão, recordou a mania que ele tinha de pôr um CD a tocar e de ouvir a mesma música vezes sem conta, uma e outra vez até enjoar, recordou as noites de amor que passaram numa casa que ele tinha na praia, recordou as reconciliações depois das zangas, os momentos únicos de conversa com os seus amigos artistas. Sentiu amor, raiva, desejo, saudades, desprezo até que chegou a indiferença. Aí percebeu que era o momento certo para guardar numa gaveta todas as fotografias dele que tinha espalhadas pela casa. Resolveu esquecer de vez aquele amor intenso mas conflituoso.
Ligou às amigas e saiu...